segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

                                                                     1
                                                  A índia e a coruja 
       Fui morar com minha avó aos onze anos. Meus pais haviam acabado de falescer e ela foi tudo o que me restou. Uma senhorinha baixa de olhos castanhos e sorriso gentil que vivia numa casinha um tanto peculiar... Na verdade, bem mais que peculiar.
       Devo dizer que não era um anjinhoo quando criança. E vó Iracema logo percebeu isso quando me viu fazendo um castelo com os livros dela, e quando me pegou usando os porta retratos como raquetes de ping pong. Mas ela nunca se aborreceu de verdade comigo, o máximo que ela fazia era me olhar com aqueles doces olhos e dizer: "Uma hora você vai ter que amadurecer querido, mas por enquanto, não tem problema continuar sendo criança". E foi oque eu fiz, continuei sendo criança. Mas como ela disse, chegou uma hora em que eu tinha de amadurecer.
        Naquela época a vida era perfeita, não tinham as responsabilidades e nem as obrigações. Quer dizer, todo ser humano normal tem que ter essas coisas, mas no tempo que morei com minha avó, acabei descobrindo que eu não era um ser humano normal.
        Houve uma noite em que minha mente foi inundada por pesadelos. Sonhei com uma índia de cabelos longos e olhos castanhos que cantava para sua tribo na margem de um rio. Ela era mais velha e ao mesmo tempo mais jovem que seus companheiros, e todos que a ouviam a tratavam como uma deusa. Mas a melododia foi interrompida com um estrondo que vinha da floresta, e num piscar de olhos vários homens brancos sairam da mata gritando e atirando. Todos os que ouviam a canção fugiram correndo, mas a índia permaneceu cantando. Os homens brancos ignoraram sua presença e mal nenhum caiu sobre ela. Então, do meio da confusão e da gritaria surgiu um homem alto e ruivo que trazia uma coruja no ombo. O homem caminhou até a margem do rio onde ela estava, e se sentou para ouvi-la cantar. E por um momento a Coruja que ele trazia no ombro pareceu me encarar com seus olhos amarelos e dizer: Acorde. E eu acordei
         Na manhã do dia seguinte fui encontrar vó Iracema sentada na mesa da cozinha, tomando café acariciando um gato preto que eu nunca tinha visto na casa. Ela deve ter percebido que tive uma noite ruim, pois me olhou de um jeito estranho, como se tivesse alguma coisa errada comigo.
          -Como foi sua noite Cauê?
          -Horrivél, tive um pesadelo muito esquisito.
          -Ah... Então talvez meu presente anime um pouco você- Disse ela pousando a chícara na mesa e erguendo o gato preto em minha direção- O nome dela é Arandu, tome, é uma menina, segure ela.
          -Então esse gato é pra mim?- Disse todo animado. Arandu ainda dormia quando a peguei nos braços, mas quando afaguei seus pelos, ela abriu seus olhos, e eles eram amarelos, iguais ao da coruja do meu sonho. "Só coincidência", disse a mim mesmo, "não tem como essa gata ter alguma coisa a ver com a coruja do meu sonho". A gata me encarou por alguns segundos, como se fosse um ser sábio me repreendendo, e então pulou do meu colo e voltou para minha avó.
          Dai em diante, as coisas só pioraram. Todas as noites tinha o mesmo pesadelo, e passei a acordar todas as madrugada suado e tremendo, isso quando conseguia dormir. Mas não dizia nada para minha avó. Ela passou a andar com Arandu o tempo todo, e aquela gata me assustava, era como se aquele bicho soubesse dos meus sonhos. Por isso, acabei evitando ela.
           Então chegou o dia em que desisti de dormir, não queria mais ter pesadelos. Tentei passar a noite acordado, mas falhei. E dessa vez os pesadelos vieram com tudo. Todas as outras noites o sonho se repetia, terminando sempre com o homem branco com sua coruja no ombro sentado diante da índia, mas esse foi diferente. A índia se levantou para encarar o homem, e ele se encantou com sua beleza. O homem ruivo ergueu as mãos para o céu e fez fagulhas de fogo sairem das pontas de seus dedos. A índia em contra partida disse algumas palavra, e fez com que o rio dançasse em direção as chamas no céu e as apagasse. Os dois pareciam estar apaixonados e passaram a noite celebrando sua paixão fazendo magia. Ele invocava dragões e bolas de fogo, e ela fazia a água dançar e rodopiar com simples palavras. O estranho é que quanto mais eu olhava para a índia mais ela se assemelhava a... Minha avó! E foi esse pensamento que me acordou.
           -Me descupe por isso- Vó Iracema estava do meu lado quando acordei- Mas você precisava ver isso querido.
           -Era você- Parecia impossível, mas eu tinha que perguntar- Você era a índia.
           -Sim meu querido. Como pode ver, vivi tempo de mais, e precisava mostrar isso a você. Era o meu passado que você observava em seus sonhos.
           -É impossível! Você não pode ser a mulher dos meus sonhos- O medo tomou conta de mim e tentei me levantar da cama, mas meu corpo não se movia.
           -Eu te amo Cauê, não precisa ter medo de mim. Mas eu precisava que você visse a que família pertence, você precisava saber o que você é.
           -E o que eu sou?- Perguntei.
           -Você é uma relíquia querido, uma luz do passado que refletiu no futuro, você é o que restou da velha magia. Em algumas terras chamam pessoas como nós de feiticeiros e bruxos, ou até de deuses. Nós somos aqueles que dançam na fronteira da realidade com o soho, aqueles que cantam as canções da floresta, somos magos querido.